
Comandante Daisy Lima, após atracação do Sebastião Caboto no Porto de Sepetiba (RJ)
A Capitã de Longo Curso Daisy Lima da Silva é prova de que já se foi o tempo em que cargas e equipamentos pesados eram obstáculos na carreira da trabalhadora marítima. Em junho de 2017, a Oficial se tornou a primeira mulher a comandar um navio porta-contêineres no Brasil, o Sebastião Caboto, da empresa Aliança Navegação e Logística. Além de demonstração inequívoca de competência, o fato é constatação de que conquistas sindicais como salários dignos, regime 1×1 e proteção à marítima gestante vêm favorecendo a presença feminina a bordo. Casada há dois anos com o também Comandante Francisco Souza, a Oficial mostra que é possível conciliar o trabalho no mar com a vida pessoal e a dedicação à família.
A paraense Daisy Lima da Silva não imaginava que seguiria a carreira marítima até participar, apenas a título de experiência, do processo seletivo para ingresso na Escola de Formação de Oficiais da Marinha Mercante – EFOMM. Com o intuito de pôr à prova os seus conhecimentos para o vestibular, Daisy e os colegas foram incentivados por um professor a prestar o exame, depois que alunos do Centro de Instrução Almirante Braz de Aguiar – CIABA, de Belém (PA), fizeram uma apresentação na escola em que ela estudava. Daisy foi aprovada e, embora tenha passado também para Engenharia Civil e Desenho Industrial, em instituições públicas, terminou optando pela EFOMM. A vida a bordo conquistou a jovem, que, desde então, não parou de investir em seu desenvolvimento. “Eu me preparei para chegar aonde estou. Fiz diversos cursos e, para me manter atualizada, leio muito sobre economia e o setor marítimo”, afirma.
Quando Daisy Lima se formou Oficial de Náutica, em 2002, o contingente de mulheres na Marinha Mercante era bem menor. Olhares desconfiados e um evidente ceticismo, passados por parte da tripulação masculina, ainda eram comuns. “Eu tinha uma colega que, quando éramos estagiárias, o Chefe de Máquinas dizia para ela não sujar as luvas… Eles falavam que na Náutica talvez déssemos certo, mas não acreditavam que nas Máquinas as mulheres pudessem ter sucesso”, recorda.
Se, na visão dos homens, as fainas eram consideradas pesadas demais para a constituição feminina, para Daisy, nada parecia impossível. “Na verdade, a gente descobre o jeito de fazer as coisas, de pegar peso, é só usar a cabeça. No caso das Oficiais de Máquinas, elas têm talha, têm macaco hidráulico para movimentar peso, a chave correta para apertar parafuso… E, hoje em dia, a tecnologia ajuda”, avalia a Comandante.
Aos 38 anos, a Oficial já acumula uma larga experiência. Antes de chegar à Aliança, estagiou no Marta, da Transpetro, e embarcou no Araucária e no Angelim, ambos da Flumar. Na empresa atual, passou pelos navios Maracanã, Ipanema, Urca, Leblon, Santos, Manaus, Pedro Álvares Cabral e Aliança Energia. Nas últimas quatro embarcações, realizou troca de bandeira, que é a transferência de nacionalidade do navio. Em 2009, a Oficial começou a imediatar e, em 2014, assumiu seu primeiro comando, à frente do Aliança Energia, um navio de 166,17 metros e 19.100 toneladas, desafio que ela considera um divisor de águas em sua jornada profissional. “Trata-se de um Heavy Lift, uma embarcação muito grande, que transporta cargas de tamanhos diferenciados e que muita gente dizia que não era adequada para uma mulher comandar. Nela, eu transportei turbina para a Usina de Belo Monte, transformador, pá eólica… Eu comecei nesse navio como Imediato e, na verdade, acabei me apaixonando por ele”, declara.

Competência e determinação conduziram Daisy Lima ao comando de um porta-contêineres
Além das cargas diferenciadas, naquela época, a Comandante passou a lidar com equipamentos bem mais pesados. “Eu estava acostumada com guindastes de 40 toneladas e um de 450 toneladas, realmente, afeta muito a estabilidade do navio no porto, acarretando uma operação bem mais complexa. Quando assumi como Imediato, o Comandante me olhou da cabeça aos pés, questionando se eu ia mesmo imediatar. Eu respondi que sim, e pedi a ele que ficasse calmo. Tempos depois, acabei me tornando Comandante daquele navio”, lembra ela, sorrindo.
“Quando assumi como Imediato, o Comandante me olhou da cabeça aos pés, questionando se eu ia mesmo imediatar. Eu respondi que sim, e pedi a ele que ficasse calmo. Tempos depois, acabei me tornando Comandante daquele navio.”
De acordo com a Oficial, enquanto as operações no Aliança Energia exigiam uma atenção especial, por conta da complexidade das cargas, no Sebastião Caboto o trabalho é focado na organização do espaço. “Quando a gente chega ao porto, desce porão, sobe porão, vai ao cais, pega a carga… O contêiner tem uma dinâmica diferente e eu tenho de fazer essa otimização de espaço, em contato com o planner portuário, para poder realizar operações rápidas”, explica a Comandante, que é responsável por um navio com 20 tripulantes, 228 metros de comprimento e porte bruto de 52.065 toneladas, operando na rota Manaus (AM) – Itapoá (SC).
Foi a bordo que a Oficial conheceu seu marido, o CLC Francisco Souza, Comandante do João de Solís, outro navio da Aliança. O relacionamento começou como amizade e três anos depois eles finalmente começaram a namorar. “Nós sempre fomos muito amigos e, quando o namoro começou, constatamos a admiração profissional mútua e o quanto tínhamos em comum. E deu certo, graças a Deus! Hoje, a empresa sempre procura conciliar o nosso desembarque”, comemora.

Daisy, em dois momentos com a família: junto à irmã Lilian (em pé) e recebendo a visita dos parentes no Terminal de Outeiro, em Belém (PA)
Sucesso vem de esforço pessoal e coletivo
A experiência profissional adquirida e o interesse por assuntos relacionados à economia e à situação do trabalhador marítimo ajudaram Daisy Lima a desenvolver um olhar crítico quanto aos rumos da Marinha Mercante. “Eu vejo um período de consolidação e conscientização do profissional marítimo. Por que eu falo isso? A gente teve um período de pleno emprego, quando não se via muita responsabilidade atrelada ao profissional, principalmente entre os mais jovens. Muitos ingressavam na Marinha Mercante visando salário, não se preocupavam em se aperfeiçoar e de um modo geral não investiam no seu desenvolvimento profissional. As empresas querem pessoas comprometidas, e já é possível observar um movimento neste sentido, de profissionais interessados em se tornar melhores, mais capacitados”, pondera.
Sempre bem informada sobre o que acontece no setor, a Comandante valoriza a atuação do SINDMAR na busca por melhores condições a bordo, como a conquista do regime de embarque e repouso 1×1 – quando o marítimo folga por um período igual ao que trabalhou – em toda a Marinha Mercante.
Daisy Lima enfatiza que a evolução das escalas possibilitou o desenvolvimento de um trabalho mais continuado e consistente a bordo. Ela conta que chegou a embarcar sob o regime 3×1 no início da carreira e diz que considera ideal a escala vigente, que lhe permite ficar dois meses a bordo e outros dois de folga. “No regime 1×1, comecei a embarcar com escala de 28×28 dias, o que era muito corrido em termos de manutenção de bordo. Não conseguíamos fazer um bom trabalho e, quando voltávamos para casa, era outra correria. O tempo era curto para nova adaptação em terra e para resolver tantos assuntos pessoais. Quando íamos ver, já estava na hora de voltar para o navio. Então, para mim e pelo que vejo da minha tripulação, a escala de 56×56 dias é mais adequada para nos planejarmos a bordo e em terra, é a que funciona melhor”, afirma.
“O trabalho desenvolvido pelo SINDMAR nos dá segurança. O Sindicato tem uma função importante, que é a de fiscalizar, de saber se os nossos direitos estão sendo respeitados. Ele luta para melhorar as nossas condições a bordo, nos mantém informados sobre o que está acontecendo ao nosso redor. É importante, para nós, termos a nossa representação sindical.”

A Comandante orienta os tripulantes durante uma operação
Embora ela mesma não tenha filhos, a maternidade é outro ponto destacado pela Comandante. Ao conversar com colegas que são mães, Daisy constatou que a maioria prefere trabalhar embarcada, tendo em vista que, mesmo passando um longo período longe de casa, ao desembarcar é possível ficar mais tempo com a criança, aproveitando o período livre para levá-la à escola, acompanhá-la em atividades diversas e dedicar um cuidado maior a detalhes da convivência no dia a dia.
Em suma, é uma conjuntura que as marítimas que embarcam consideram vantajosa em relação à da mulher que troca o mar pela terra e que, trabalhando em período integral, muitas vezes só tem a oportunidade de estar perto dos filhos nos fins de semana e nas férias.
Outra dificuldade com a qual as mulheres costumavam se defrontar e que hoje já não está mais em evidência é a postura intransigente de algumas empresas com relação a uma gravidez de risco. “Pelo menos aqui, se o médico diz que a marítima precisa repousar, ela pode ir para casa sem preocupação. Não existe pressão como eu via em outras empresas, quando queriam que a grávida embarcasse mesmo sem ter condições. Tem gravidez que é tranquila, que dá para embarcar, mas também tem aquelas que pedem uma atenção maior. Hoje em dia, o Comandante está muito voltado também para a gestão de pessoas”, observa.
Neste sentido, a Comandante ressalta a importância da colaboração da Representação Sindical, que conseguiu incluir cláusulas de proteção à marítima gestante nos Acordos Coletivos de Trabalho de um grande número de empresas de navegação. “O trabalho desenvolvido pelo SINDMAR nos dá segurança. O Sindicato tem uma função importante, que é a de fiscalizar, de saber se os nossos direitos estão sendo respeitados. Ele luta para melhorar as nossas condições a bordo, nos mantém informados sobre o que está acontecendo ao nosso redor. Tanto eu quanto o meu marido somos sindicalizados. É importante, para nós, termos a nossa representação sindical”, conclui.
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